quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Salmo 133

CONSAGRAÇÃO A DEUS

DAVI

Na tradição hebraica, a figura de DAVI, rei de Israel, tem duplo significado; o de fundador do poder militar judaico e o de símbolo da aliança entre Deus e seu povo.

A história de Davi é narrada na Bíblia, nos livros I e II de Samuel. Nascido em Belém, na Judéia, entrou como harpista na corte de Saul, primeiro rei de Israel. Na guerra contra os filisteus, o jovem Davi, armado com uma funda, matou Golias, o gigantesco campeão dos inimigos.

Essa vitória e outras que se seguiram despertaram o entusiasmo do povo e, enciumado, o rei Saul resolveu eliminá-lo, embora este tivesse se casado com sua filha Micol e fosse amigo de Jônatas. Davi então fugiu da corte, vivendo em seguida em vários lugares. Depois da morte de Saul e Jônatas, Davi regressou á Judéia e sua tribo o nomeou rei, ao mesmo tempo em que as tribos restantes elegiam Isbaal, o outro filho de Saul.

Na guerra que se seguiu, Isbaal foi morto e Davi tornou-se rei de Israel, fixando a capital em Jerusalém e, para lá transferiu a Arca da Aliança, maior símbolo religioso dos israelitas.

Vários episódios dão á vida de Davi uma nota humana e realista, sobretudo seu adultério com Betsabéia, mulher de Urias, para cuja conquista final teve de liquidar, indiretamente, o marido, que era seu general e dessa ligação nasceu Salomão.

Davi era também extraordinário poeta e músico, e a ele se atribui boa parte dos poemas que compõem o Livro dos Salmos. Na hora da morte, ungiu como rei seu segundo filho, Salomão. Seu corpo foi levado para Belém e ali sepultado. Na tradição posterior, Davi foi apresentado como garantia da união entre Deus e o povo.

SALMO 133

“OH! COMO É BOM E AGRADÁVEL VIVEREM UNIDOS OS IRMÃOS!

É COMO O ÓLEO PRECIOSO SOBRE A CABEÇA, A QUAL DESCE PARA A BARBA, A BARBA DE ARÃO E DESCE PARA A GOLA DE SUAS VESTES.

É COMO O ORVALHO DO HERMON, QUE DESCE SOBRE OS MONTES DE SIÃO.

ALÍ ORDENA O SENHOR A SUA BENÇÃO E A VIDA PARA SEMPRE.”

Este salmo tem sido atribuído ao Rei David. Há quem afirme que é obra do período pós exílio; época que em forte clima emocional, é retomado o culto a JAVEH em plena Jerusalém. Importante é que o tempo não apagou nem alterou tão profunda mensagem, tendo sido transmitida com o tradicional zelo judaico através de gerações até chegar hoje, de forma familiar, a todo maçom.

O Salmo encanta por sua singeleza, por sua mensagem direta, profunda, e pelas objetivas analogias que encerra. Embora não nos seja familiar a imagem do óleo descendo da cabeça até a gola das vestes sacerdotais ou o cenário do orvalho que dos montes (como o portentoso Hermon), desceu até os vales.

Para transmitir o que esta unidade fraternal em sua essência significa, a poesia traz á consciência de cada um o paralelismo com duas figuras bem familiares ao povo hebreu: A barba de Arão e o Monte Hermon.

ARÃO:

Arão é o primeiro nome lembrado toda vez que se falar em religião judaica. A citação do seu nome evoca um paradigma sacerdotal, a linhagem levita.

Arão, é o irmão mais velho de Moisés e seu principal colaborador. A figura de Arão possui, um peso próprio na tradição bíblica, devido ao seu caráter de patriarca e fundador da classe sacerdotal dos judeus. Arão, membro destacado da tribo de Leví, viveu em torno do século XIV A.C. De acordo com a descrição do Exôdo, era filho de Amram e Jocabed e três anos mais velho que Moisés. Segundo a maioria dos biblícistas, se Moisés encarnava a visão profética, Arão simbolizava a necessidade de um poderoso testamento sacerdotal.

Durante o exôdo do povo judeu, Arão é o escolhido por Deus para transmitir ao faraó e ao povo a sabedoria por ele concedida a Moisés.

Em Exôdo: 4: 16," Ele falará por ti ao povo; ele será a tua boca, e tu serás para ele um deus".

Do mesmo modo, Arão ajudou Moisés a tirar seu povo do Egito, atravessando o deserto. Enquanto Moisés se achava no monte Sinai, onde recebeu Os Dez Mandamentos, Arão deixou de lado as recomendações do irmão e, ante as súplicas do povo, mandou construir a imagem do Bezerro de Ouro. Isso provocou a cólera divina e Arão não teve permissão para entrar na Terra Prometida. Apesar disso, Deus o consagrou sumo - sacerdote, fazendo com que de seu cajado brotassem flores.

Foi o primeiro sacerdote dos hebreus, o escolhido pelo Senhor para o sacerdócio, introduzido no tabernáculo ainda no Egito.

Em Números 3: 5-10, temos a declaração explicita de Jahveh:

"Disse o Senhor a Moisés: Faz chegar a tribo de Levi, e põe-na diante de Arão, o sacerdote para que o sirvam, e cumpram seus deveres para com todo o povo, diante da tenda da congregação, para ministrar no tabernáculo.

Terão cuidado de todos os utensílios da tenda da congregação, e, cumprirão o seu dever para com os filhos de Israel no ministrar no tabernáculo.

Darás pois os levitas a Arão e a seus filhos; dentre os filhos de Israel lhes são dados. Mas a Arão e seus filhos ordenarás que se dediquem só ao seu sacerdócio, o estranho que se aproximar morrerá."

Em Exôdo: 40: 13-15, encontramos o comando de Jahveh a Moisés de forma definitiva: "Vestirás a Arão das vestes sagradas, e o ungirás e o consagrarás, para que me oficie como sacerdote.... e sua unção lhes será por sacerdócio perpétuo durante as suas gerações”.

Unção!

É ato de ungir, sagrar alguém ou algo para uma função ou atividade elevada. Na liturgia hebraica, a unção era atribuição privativa dos sacerdotes e estes; até a época de Salomão eram exclusivamente da tribo de Levi.

Disse também o Senhor a Arão: Na sua terra possessão nenhuma terás, e no meio deles nenhuma parte terás, eu sou a tua parte e a tua herança.

Os Levitas administrarão o ministério da tenda da congregação, e eles levarão sobre si a sua iniquidade; pelas vossas gerações estatuto perpétuo será.

Em Levitico: 8: 1-12, encontramos detalhes do ritual de sua “INSTALAÇÃO” como sumo - sacerdote, celebrada por Moisés, conforme as instruções recebidas do Senhor. Na etapa final desse que foi um dos mais solenes cerimoniais de "instalação" descritos no Velho Testamento, o texto assinala :

"Então Moisés tomou o óleo da unção, e ungiu o tabernáculo, e tudo o que havia nele, e o consagrou; e dele espargiu o altar e todos os seus utensílios, como também a bacia e o seu suporte, para os consagrar. Depois derramou do óleo da unção sobre a cabeça de Arão, ungiu-o para consagrá-lo.

TABERNÁCULO, OU TENDA DA CONGREGAÇÃO , era o templo provisório, móvel, utilizado por todo o período anterior á construção do Templo de Salomão, o que ocorreu por volta do ano 968 a.C.

Por todo esse histórico, Arão é personagem importante na história do povo judeu.

Como sacerdote, tinha o privilégio de participar do oficio e cerimoniais no tabernáculo, apresentando diante de Deus as oferendas em nome do povo. Na qualidade ainda de sumo - sacerdote tinha também a responsabilidade e suprema honra de ser o único a entrar uma vez por ano no local "santíssimo " onde se encontrava a Arca da Aliança.

Sua consagração como sacerdote foi feita pelo próprio Moisés por meio do derramamento do óleo sobre sua cabeça. O óleo que desceu sobre a sua barba até alcançar as suas vestes, reveste-se de singular simbolismo no contexto.

O corpo envolto no óleo, simbolizando a consagração sacerdotal, estaria capacitando Arão de representar todo o povo diante do Senhor. Era como se o povo judeu fosse, unido, representado por um corpo - um corpo ungido - perante o Altíssimo.

É a esse óleo que o Salmo da Fraternidade se refere como "precioso". Sua composição, transmitida pelo Senhor a Moisés, reúne apenas cinco ingredientes, em porções bem definidas:

"Tu pois toma para ti das principais especiarias: da mais pura Mirra quinhentos siclos, (Siclos: moeda dos hebreus, de prata pura que pesa- va seis gramas), de Canela aromática a metade, a saber, duzentos e cinquenta siclos; e, de Cálamo aromático, duzentos e cinquenta siclos; e de Cassia quinhentos siclos e de Azeite de Oliveiras um him.

Cumpre ressaltar, a natureza santa desse óleo.

O sentido do termo Santo é separado, sagrado, consagrado. Não é comum, profano ou vulgar, tanto que o próprio Deus adverte explicitamente:

EM Exôdo 30: 31-33 "Este me será o azeite da santa unção nas vossas gerações. Não se ungirá com ele a carne do homem, nem fareis outro semelhante conforme á sua composição: santo é, e será, Santo para vós. O homem que compuser tal perfume como este, ou que dele puser sobre um estranho, será extirpado dos seus povos."

De acordo com o livro dos Números, Arão morreu no monte Hor com 123 anos de idade.

Outras fontes bíblicas, porem, afirmam que ele morreu em Moserá.

MONTE HERMON:

“É COMO O ORVALHO DO HERMON, QUE DESCE SOBRE OS MONTES DE SIÃO.

ALÍ ORDENA O SENHOR A SUA BENÇÃO, E A VIDA PARA SEMPRE.”

A outra figura lembrada pelo salmista nos transporta ao portentoso e belo monte Hermon, e o orvalho que do seu topo se precipita aos montes de Sião.

Reputado como local sagrado pelos habitantes originais de Canaan, o monte Hermon situa-se na região norte da Palestina hoje, na fronteira do Líbano com a Síria e, se eleva a 2.800 metros de altitude. O cume do Hermon está permanentemente coberto de neve. Aos seus pés tem origem o rio Jordão, responsável por tornar fértil toda a região conhecida como vale do Jordão, que se estende da cidade de Dã até a região de Edom, ao sul do Mar Morto.

A fertilidade, isto é, a própria vida da região, é dádiva do monte Hermon. Se não fora o orvalho de suas vertentes, não existiria o Jordão. A região vizinha é inóspita e sem chuvas. As águas cristalinas do Jordão asseguram a irrigação e com ela a vida ao longo do vale verdejante.

É possível dai se entender o significado simbólico do "...orvalho do Hermon" e a paráfrase da conclusão:

"Alí ordena o Senhor a sua benção e a vida para sempre”.

Duas figuras, o óleo que desce da cabeça de Arão e o orvalho do Hermon que também desce, eis as analogias feitas pelo poeta para comparar as benesses da vida em união. Tudo se passando como se ele tivesse dizendo que viver em união é como ter Arão como sacerdote, em intimo contato com o Criador, interpretando nossas dores e alegrias e oferecendo os sacrifícios. Ou então é como ter garantida a vida, que frui do Hermon até aos montes de Sião, assegurando a fertilidade da região de onde vem nosso sustento.

Com estas duas figuras entendemos o que o salmista nos traz. Viver em união, como irmãos, é a superação de todos os males. É sinônimo da máxima virtude humana. É quando os homens ascendem ao clímax da felicidade. É a realização do EU coletivo. Não o seremos "eus" mas "nós". A felicidade da vida em união é comparada com dois planos: o espiritual, simbolizado pelo óleo sobre a cabeça ungindo Arão, que permite o homem alcançar o plano do EU superior. E material, representado alegóricamente pela água que descendo do Hermon assegura a vida pela perene fertilidade do solo.

De um lado o espirito – o compasso - de outro o corpo - o esquadro, e no meio o homem plenamente harmonizado consigo mesmo, com os demais semelhantes, com a natureza (a terra) e com o Principio Criador. O óleo, o homem, o monte e a água formam os símbolos e alegorias, que nos levam a entender o significado da real união entre homens que se definem como irmãos.

O Salmo 133 consagra o puro e verdadeiro amor fraternal, essência para a construção dos novos tempos. "Ali ordena o Senhor a sua benção, e a vida para sempre". Ele retrata os mistérios da felicidade interior dos que vivem em harmonia com seus irmãos, tal como preconiza nossa ordem. Feliz aqueles que compreendem o essencial deste poema, para alguns oculto, e, muito mais do que isto, conseguem viver esta experiência.

O objetivo primário da Maçonaria é unir os Irmãos de tal forma que possam parecer um só corpo, uma só vontade, um só espírito, formando um Templo coeso, compacto, de partes heterogêneas formando um todo. Os Maçons, portanto, quando unidos pela Cadeia de União, não estão absorvidos nem diluídos, mas ligados através da soma das forças físicas e mentais, existindo individualmente no todo.

“Segui a palavra de Davi, é a voz de Deus na Terra ”.

Irmão Antonio José Rodrigues

BIBLIOGRAFIA:

Texto elaborado a partir das fontes abaixo:

Bíblia.

Revista A Verdade nº 381.

Enciclopédia Britânica ( Barsa).

Dicionário Aurélio Eletrônico.

Revista 0 Milênio.

Ritual da Magia Divina - Os Salmos de Davi e suas Virtudes.

apoio e materiais fornecidos:

Cleanto Pereira : ARLS Lealdade Paulistana

Jair Mendes Ferreira : ARLS Cidade de São Paulo nº 416

A Flauta Mágica

A ópera de Mozart é um desaguadouro das diversas tendências ideológicas e artísticas da do século XVIII

por Marcelo Xavier

1791, o compositor Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) recebeu uma insistente encomenda de um empresário de um teatro dos arredores de Viena, Emanuel Schikaneder. A história, um tanto exótica, parecia fazer o gosto da platéia da época, que vivia num curioso modismo de costumes "orientalistas".

Era uma história fantástica, num enredo típico de contos de fadas, que fala de um príncipe e uma princesa, uma rainha e um sacerdote malvado e um carismático passarinheiro. A ópera, que seria apresentada como singspiel (cantada e falada) para um público de gosto popular (algo que só se efetivaria com o advento do Romantismo, no século XIX), se chamava A Flauta Mágica (Die Zauberflöte) e se transformaria na obra-prima do compositor mais ilustre da capital dos Habsburgos.

Apesar do enredo aparentemente simples, parte da crítica notou que, além de "orientalismos", a história era uma espécie de alegoria do universo da Maçonaria em que Mozart vivia e falava de valores que se aproximavam muito do pensamento Iluminista. Como disse alguém a respeito da peça, "Não existe outra ópera que seja tão ambígua: é um conto mágico ou uma peça de mistério? Uma alegoria sobre o bem e o mal ou uma parábola do verdadeiro amor?". A partir de sua primeira apresentação, em 30 de setembro de 1791 (dois meses antes da morte do autor), ficava a dúvida: não se tratava apenas de uma obra fantástica. Suas implicações subliminares eram cada vez mais numerosas e evidentes.

UMA FÁBULA?

Com a morte do imperador José II, Mozart não receberia mais encomendas de óperas para a corte de Viena. O seu abandono ficaria ainda mais evidente com a demissão, por ordem real, de seu libretista italiano, Lorenzo da Ponte, colaborador em três obras. A sorte do músico só mudaria com Emanuel Schikaneder, ator, empresário e libretista. Ele havia assumido a direção do Theater Auf Der Wieden (um teatrinho de feira, espécie de percursor dos "nicklodeons") e ofereceu a idéia de Die Zauberflöte - adaptação livre de um conto de Wieland, para uma platéia mais suburbana. Para esse público menos classudo, a história parecia uma fábula sobre o amor, onde tudo está bem quando acaba bem, e dá certo quando o casal que se ama trabalha junto na superação das dificuldades impostas pela vida. Tamino é um príncipe egípcio e Pamina é filha da Rainha da Noite. A história se passa no Egito, no período de Ramsés I. Tamino é perseguido por uma cobra, desmaia e é salvo por três damas da noite, ao mesmo tempo em que chega um caçador de pássaros, falastrão e mentiroso, Papageno, que conta ter matado a tal cobra. As damas ouvem a deslavada mentira e o punem por isso.

Em seguida, elas revelam ao príncipe que Pamina foi raptada pelo mago Sarastro. A rainha então roga a Tamino que vá salvá-la. Este recebe dela, pelas mãos das três damas, uma flauta mágica. Ao ser tocada, a flauta pode salvá-lo de todos os perigos. Então acontece a mudança no plano dramático:

na verdade, eles descobrem que o obscuro reino do sumo-sacerdote é uma comunidade sábia, dirigida por homens sábios e de grande virtude, e que o rapto foi para salvar a jovem das maldades de sua mãe. No fim do primeiro ato, Papageno e Tamino aceitam passar por um ritual de iniciação. O passarinheiro, um rapaz de vida simples e que se resumia a tomar um cálice de vinho e encontrar uma namorada, com menos coragem, desiste das provas em favor do príncipe. Este, acompanhado de Pamina, vence os desafios, com o auxílio da flauta mágica. No fim, Papageno encontra uma alma gêmea - Papagena - e juntos entoam um dueto doce e memorável. Se Sarastro era bom, a verdadeira vilã é a Rainha da Noite (cuja antológica ária de apresentação ficou conhecida na propaganda da Chevrolet, na voz de Édson Cordeiro).

Segundo o historiador Luiz Roberto Lopez, professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tanto a conclusão da Flauta Mágica quanto a diferença entre a Rainha da Noite e Sarastro mostravam as intenções de Mozart em exaltar o triunfo da fraternidade sobre a intolerância e da luz sobre as trevas - essa é, mais ou menos, a idéia principal. E o "orientalismo" da peça, por sua vez, animou Schikaneder, que previu casa cheia durante as apresentações, cuja assistência tomava gosto por esse tipo de novela fantástica. Contudo, segundo Roberto Lopez, a Zauberflöte é um desaguadouro das diversas tendências ideológicas e artísticas da segunda metade do século XVIII. "Nela encontramos o amor à natureza, a canção popular, o lirismo romântico, o humor ingênuo, a lição moral, o elevado humanismo e a retórica iluminista", diz Lopez. O historiador observa também que o verniz orientalista do enredo foi um dos recursos que Mozart aludiu para se referir ao que seria o elemento principal no libreto da ópera: o vínculo do compositor com a Maçonaria.

SIMBOLISMOS

Para os estudiosos, a primeira pista apareceu na confecção do primeiro libreto: uma página de rosto foi desenhada por um gravador que era conhecido membro da maçonaria, Ignaz Alberti. Para os não iniciados, soava como uma gravura de uma escavação arqueológica no Egito, devido ao cúmulo de elementos maçônicos contidos na ilustração. Como se sabe, Mozart pertenceu à Maçonaria austríaca, assim como o seu colega Joseph Haydn, além do próprio Emanuel Schikaneder. Porém, ao contrário das lojas francesas, este grupo não

tinha qualquer intenção revolucionária, a não ser a constituição de uma comunidade afeita a discutir concepções genéricas muito bem comportadas. Mesmo que essas lojas fossem bastante "moderadas", na terra de Mozart, devido aos eventos de 1789, as agremiações maçônicas passaram a ser perseguidas e fechadas, entre 1794 e 1796. Assim, quando José II morreu, a Maçonaria estava em seus estertores na Áustria.

Com a pena da sutileza, o compositor da "Eine Kleine Nachtmusik" desenhou no pentagrama e no palco um simbolismo diáfano do que era a Maçonaria da sua época, com o objetivo de escapar da censura. Deste modo, todo o ritual passava desapercebido ao público comum, mas não aos iniciados.

O fator mais recorrente é a utilização do número três em vários momentos da ópera. A abertura (em mi bemol maior) comporta dois movimentos: um adágio-allegro-fugatto. São três acordes ascendentes que servem de prelúdio a uma melodia que se insurge de maneira indecisa, quando é quebrada pela explosão do allegro. Três bemóis na clave principal (mi bemol maior) na Ouverture, três meninos, três damas. Outra pista é a cena da Cruz Soberana com os soldados: a introdução orquestral desta cena possui dezoito grupos de notas. Sarastro aparece pela primeira vez na cena dezoito do primeiro ato(!). No começo do último, o mago e seus sacerdotes entram em cena: são dezoito sacerdotes e a primeira parte do tema que eles interpretam, o coro "O Isis Und Osiris", dura dezoito compassos.

Explica-se: já que o número dezoito é múltiplo de três, três é na verdade o tal número recorrente.

SUBVERSÃO

De acordo com Luiz Roberto Lopez, junto coma tese "maçônica" de Die Zauberflöte, existe uma outra, que joga-a para um outro lado. Um outro autor, Claudio Casino, chama a atenção que Ignaz Von Born havia deixado a Maçonaria em 1786 para ingressar numa outra sociedade secreta, esta situada mais à "esquerda" dos maçons, chamada Ordem dos Iluminados. Os Iluminados teria se utilizado dos elementos típicos da Maçonaria com a intenção de subvertê-la. Consta que eram adeptos do materialismo ateu e defendiam uma sociedade sem classes. Revolucionários, a nova Ordem atacava os maçons,

acusando-os de ociosos e obscurantistas. Pela ótica de Casino, a identificação de Von Born com Sarastro teria outra explicação: seu oponente, a Rainha da Noite, não representava a Imperatriz Maria Teresa (que andava às turras com a Ordem do Templo), mas sim a Maçonaria "obscurantista". Por outro lado, nessa mesma tese, a cena do ritual de iniciação de Tamino e Pamina no Templo de Ísis não representaria a sua iniciação na Maçonaria, mas sim o ingresso desta para a Ordem dos Iluminados.

- Sob a aparência de uma fábula maçônica, Mozart teria feito uma exposição dos rituais dos "Iluminados" - revela Lopez.

Desta forma, a hipótese de Casino terminou questionando quase veementemente àqueles que achavam que a tese "maçom" da Flauta Mágica fosse irrefutável. Pelo menos, o que é seguro é que o compositor faz uso corrente de simbologia da Ordem à qual pertencia. Mesmo sendo uma idéia sedutora - assevera o historiador - a teoria de exaltar uma comunidade mais "radical" como a dos Iluminados não se confirmaria de todo. Afinal, a dualidade luz/trevas, tão presente na ópera, era elemento comum tanto entre os maçons quanto os Iluminados. Mais do que isso, ela não deixava de representar o ideal daquela época, como representação do racionalismo, o mote principal de todo o ideário iluminista: "o mais certo é que Mozart foi, antes de tudo, coerente com a sua própria concepção humanista de vida", entende Lopez. "As diferenças de posicionamento entre as duas ordens, por mais importantes que parecessem, seriam sutilezas políticas para as intenções do compositor".

"ELE É UM HOMEM!"

Correndo por fora deste embate ideológico, Luiz Roberto Lopez salienta a questão de idéias que A Flauta Mágica expõe e defende, com clara finalidade didática e moralizadora, "bem ao gosto dos Iluministas". Nesse sentido, é nítido o conteúdo maçônico do trinômio "virtude-prudência-sabedoria" e alusões à elementos "puros" como Bondade e à Fraternidade. O historiador salienta um trecho falado no segundo ato, onde Sarastro e os demais sacerdotes discutem a admissão de Tamino na Ordem. Um deles diz, referindo-se ao herói: "ele é um príncipe", ao que Sarastro retruca; "mais do que isso, ele é um homem" ("Er ish Mensch!"). Mais que um príncipe, um homem. Ou seja, antes de qualquer título honorífico, ele é como um de nós, e é um ser humano. Ele não seria maior do que todos pela realeza, mas nivelado pela sua condição humana. Em Zauberflöte, personagens que simbolizam traição (como o mouro Monostatos), opressão e dissimulação (a Rainha da Noite) são fadados ao fracasso e à morte.

A rainha, aliás, ao ser subentendida como a corte decadente, de acordo com Lopez, seria mais uma construção feita como desagravo e testemunho do valor de uma "corporação ameaçada" e representação de intolerância daqueles tempos. Ao contrário, a comunidade de Sarastro seriam os novos tempos, o reino da benevolência. "Esta é a verdade que, inicialmente oculta ao público, ao ser contada, surge como uma revelação". Apesar desse embate, não existe violência n'A Flauta Mágica. Mesmo a "malvadeza" da Rainha da Noite é atenuada pela beleza e a coloratura de duas principais árias e o carisma dos personagens consegue subverter os "deslizes" do libreto de Schikaneder, como a "incoerência" de Tamino, que, antes, covarde fugitivo de uma serpente, vira um guerreiro audaz. Já Papageno, o mais emblemático da ópera, é dono de uma singela virtude que o assemelha ao mito do "bom selvícola", de Jean-Jaques Rousseau. É o homem em seu estado natural, dócil e inocente, em contato com a natureza e auto-suficiente em seus simples prazeres.

A Flauta Mágica, a derradeira de Wolfgang Amadeus Mozart, é certamente a mais universal de todas. Não é a rede de intrigas de Cosi fan Tutte, não é uma eficiente bufonaria com toques de comédia grega, como Le Nozze de Fígaro, não é a velada defesa do individualismo "burguês" que se ensaiava naquele fim de século, como em Don Giovanni. A Flauta Mágica fala de grandes sentimentos: "é a ópera dos elevados sentimentos humanos, traduzidos num clima de beleza e de beatitude", destaca Lopez. "É a ópera dos altos ideais se impondo ao obscurantismo, é o evangelho de uma religião muito particular de Mozart, impregnada do humanismo confiante e da felicidade como aurora promissora no horizonte, proclamados no pensamento da Idade das Luzes", conclui.

Para quem se interessar, é possível ouvir boas versões de A Flauta Mágica em CD nas lojas. Infelizmente, os títulos de clássicos em edições brasileiras rareiam muito. Para quem se preocupa com a qualidade das interpretações, desde os solistas até a orquestra, por exemplo, na verdade, não existe uma gravação perfeita da obra. Existem mais algumas consagradas mais pelos seus respectivos regentes ou por seus atores, mas nem sempre uma edição conhecida seja a melhor. Em se tratando de música clássica, é fácil incorrer no equívoco de comprar a peça porque o intérprete é famoso. A edição da Filarmônica de Berlim (regência de Herbert Von Karajan) é bastante difundida, mas tem interpretações abaixo da média geral. Na verdade, serve como registro histórico de uma época da "Berliner". Existem versões que "pecam" menos e podem ser recomendadas, mas são imperfeitas no todo. Entre elas há o DVD de Araiza/Serra/Battle/Holl/Levine (Deutsch Gramoffon Gesselchaft) É uma gravação com excelente resultado, em vários aspectos. Em CD, a gravação de melhor resultado final é a do maestro Otto Klemperer com a Philharmonia Chorus Orchestra, com Nicolai Gedda como Tamino. Edição EMI: "Great Recordings of the Century" (CD duplo).

Para saber mais:

Mozart, um Compêndio (Zahar, 562 pp), organizado pelo musicólogo e historiador inglês H.C. Robbins Landon e que reúne verbetes de 24 excelentes colaboradores.